Aqui você vai encontrar os textos que norteiam o projeto. Eles indicam como o material foi pensado e sua lógica de apresentação.
Em Panorama do ensino musical você encontra um histórico do ensino de música no Brasil, aspectos políticos e legais, além de um levantamento junto às Secretarias de Ensino sobre a lei e seus desdobramentos em cada Estado.

Música na escola: uma experiência de (com) fiar

Adriana Miritello Terahata

Quando o ensino de música voltou a ser obrigatório no Brasil e sua efetiva implementação definida para agosto de 2011, nos deparamos com uma inquietante pergunta: qual o sentido da música na escola?

Lançamo-nos ao desafio de tentar respondê-la reunindo profissionais da área de música e da educação que também se sentiram desafiados e, em uma atitude generosa, decidiram compartilhar seus pensamentos e fazeres.

A experiência de ouvir estes diferentes educadores, músicos, educadores musicais; de perguntar, pensar juntos sobre a obrigatoriedade do ensino de música nas escolas brasileiras, remeteu-me ao trabalho das fiandeiras. Ao fiar e desfiar fios constituindo um tecido… Nossa vivência também foi de fiar, de (com) fiar!

O tecido é produto de uma tensão – a urdidura e a trama – na educação, a referência e o movimento respectivamente. Tecemos a educação nesta tensão de uma relação assimétrica entre adulto-jovem. Tecer os fios da educação requer paciência, assim como Penélope que tecia o manto à espera de Ulisses, trabalho interminável… A Educação como um tecido, uma trama feita por múltiplos fios que vão, a cada segundo, conferindo uma nova textura, um novo desenho…

A educação passa pela questão de ser, de se tornar humano. Educar, portanto, não se restringe a determinados assuntos, muito menos em abordar temas específicos ou em ser estabelecido como um processo realizado de modo fixo, nem tampouco a ser realizado, apenas, por instituições específicas.

É nesta perspectiva que revisitei o que foi dito e escrito sobre a música na escola ao longo deste projeto, apontando, de alguma forma, as possibilidades e desafios que foram apresentados.

Se, como afirma Carvalho (2007:21), em conformidade com o pensamento de Hannah Arendt, o papel do professor é ensinar: iniciação deliberada e sistemática nas linguagens, procedimentos e valores referentes tanto a sua área de conhecimento quanto à cultura e aos valores da escola. Qual o papel do educador de música? Quem é ele? Qual sua formação?

Outro aspecto a ser considerado é que também existem, como lembra o autor (2007:20), várias instituições formativas e maneiras de acolher os novos, no entanto, em cada caso, variam-se os procedimentos e os objetivos.

Nesse sentido, ensinar na “escola de música” é diferente de se ensinar na “escola convencional” onde a matéria música irá conviver com todas as outras que já fazem parte do currículo educacional. Como será esta convivência? De­fen­de­mos uma interrelação profunda e significativa, isto é, que todos os fazeres educacionais dialoguem entre si para um co­nhecer melhor o mundo, para melhor estar no mundo…

Vou me valer de uma afirmação de Hannah Arendt em seu texto Sobre a Educação para fomentar tais reflexões:

A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a respon­sa­bi­lidade por ele, e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos no­vos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las aos seus próprios recursos e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar o mundo comum. (2001: 247)

Acredito que nesse inquietante pensamento de Hannah Arendt, residem alguns aspectos fundamentais de serem pensados ao se propor o ensino de música nas escolas.

Ao nos indagarmos se amamos o mundo o bastante…, pergunto: a que mundo estamos nos referindo? E, no mesmo sentido: de que criança estamos falando?

Pensar a educação é nos debruçarmos amorosamente sobre essas questões e, por se tratar de uma relação de se ensinar e se aprender, respondermos, de alguma forma, a elas: que mundo queremos apresentar para as crianças e que crian­ças que­remos educar?

Hannah Arendt (2001) afirma que não podemos deixar as crianças entregues aos seus próprios recursos, isto é, temos responsabilidade em ensinar o maior número possível de recursos para que as crianças tenham condições de lidar com o maior número de possibilidades. Isto não significa dizer que “doutrinaremos” os pequenos prevendo situa­ções e simulando reações, mas implica dizer que as crianças, ao experimentarem uma diversidade de situações no âmbito protegido da escola, poderão desenvolver tais recursos.

Isto também significa por à disposição das crianças os saberes acumulados pela humanidade, fazê-las circular dentro do discurso corrente e, talvez o mais importante, ouvir atenciosamente os sentidos atribuídos a tais experiências.

No mesmo sentido, nesse projeto, um discurso comum a todos os colaboradores foi a defesa de um mundo mais solidário, ético e a educação de crianças autônomas e que consigam, ao longo de sua trajetória educacional, construir e constituir uma rica variedade de recursos para lidar com a diversidade do mundo.

A partir do exposto, considero que a música como conhecimento humano tem que ser disponibilizada, tanto como apreciação quanto pelo fazer musical, para os pequenos que chegam ao mundo, aliás, eles chegam a um mundo musical, sonoro.

Considerando que conhecer o mundo também é saber da necessidade que ele tem do novo, o fazer do educador não poderá ser construído sem respeito ao jovem, que o traz consigo. Daí se reconhecer a necessidade de diálogo, de escuta mútua. Todos devem falar e ouvir, com a liberdade e o espaço que seus papéis demandam e permitem, daí a necessidade de uma educação aberta ao diálogo.

Este texto também tem essa perspectiva de abertura, por se completar na maneira de ler, de ser acolhida pelo leitor que se sentir desafiado a pensar o ensino de música a partir desse ponto de vista: ele só será possível se percebido como direito fundamental de todas as crianças e jovens. Ele só será possível em um ensino sem preconceito e discriminação.

Para tanto, acredito que as ações coletivas devam ser priorizadas e norteadas por princípios como tolerância, res­­peito e, principalmente, pelo diálogo em vez de ações que mantenham a lógica vigente do consumo e do isolamento.

No entanto, essas ações coletivas não devem ser confundidas com homogeneização dos envolvidos. É importante respeitar a individualidade de cada pessoa e cada ação ser estudada, analisada e efetivada considerando a pluralidade presente.

Nas relações ensino-aprendizagem, o que percebemos é que concepções pré-estabelecidas determinam o melhor jei­to de ser e agir do outro, as melhores intervenções. Não necessariamente elas estão equivocadas, porém temos que aten­tar à necessidade de abertura ao diálogo, relação que não pressupõe superioridade por nenhuma das partes, uma vez que se torna possível rever posições já que o outro é considerado.

Como defendo a implantação de uma rotina para crianças e jovens, tanto no que se refere aos combinados organiza­cio­nais quanto aos combinados éticos, também defendo para os adultos – educadores – um tempo-epaço para reflexão sobre a ação com crianças e jovens.

Um passo importante é construir, junto com os diferentes parceiros, na perspectiva de uma rede de proteção à crian­ça e ao adolescente, um projeto educacional que rompa com a ‘aplicação’ dos guias para educadores. Esse projeto requer objetivos comuns que possam servir como indicadores para uma avaliação constante da própria prática.

Um grande desafio a ser superado diz respeito ao espaço que a música ganhará na escola: qual música ensinar? Como ensinar? E a qualificação do educador que assumirá esta responsabilidade?

Acredito que a educação é, antes de qualquer coisa, uma atitude ética, generosa de uns com outros… É necessário compartilhar, lançar-se aos desafios cotidianos do fazer, não sob a arrogância acadêmica, cientificamente correta, com a postura do saber mais, de ter encontrado verdades… Mas com o compromisso do pensar sobre, uma ciência engajada, comprometida. É preciso permanecer e continuar se debruçando atenciosamente sobre estas questões (ou algumas delas).

Termino a costura do texto, porque essa se faz necessária, mas a prática reflexiva sobre o trabalho com música para e com crianças e jovens, a partir dessas experiências, deve continuar…

Optei por trazer, de forma sintética, um pouco do pensamento das pessoas que (com) fiaram e, dessa forma, abriram a possibilidade de compartilhar experiências, tendo em vista que compartilho e vivencio muitas das angústias vividas por aqueles que por aqui passaram… Reconheço que os fios que teceram essa trama estão fundamentados na admiração e respeito pelas pessoas que aco­lheram esta proposta e com quem convivi ao longo do último ano. É pautada nesses valores, bem como na defesa de uma educação significativa que me pus à disposição.

A palavra respeito permeou todas as possibilidades de ensino de música: pela diversidade de repertório, de métodos, de tempo e espaço para acontecerem. Dessa forma, a responsabilidade ética deste projeto foi de se assentar em uma relação de respeito, como deveria se dar toda e qualquer proposta educativa. Respeito traduzido em uma escuta atenta, honestidade nas opiniões, em resumo, em uma abertura ao outro.

Uma grande amiga me ensinou que uma sociedade de confiança é uma comunidade de solidariedade, de projeto comum, de intercâmbio, de uma liberdade criativa que conhece seus deveres e limites, em suma, sua responsa­bilidade.¹

Assumir minha responsabilidade pelo mundo se traduz agora em compartilhar este trabalho com todos aqueles que também queiram tecer o bem comum, que se disponham a (com) fiar.

Ao vislumbrar a trama que se formou, espero ter encontrado alguns fios que possam guiar aqueles que pretendem enfrentar o desafio de amar o mundo educando crianças e jovens a partir das reflexões que esse texto suscitou e, de forma respeitosa, usando as palavras de Mia Couto (2003: 16), peço licença…

É que em todo lado, mesmo no invisível, há uma porta.
Longe ou perto, não somos donos mas simples convidados.
A vida, por respeito, requer constante licença.

Referências bibliográficas

ARENDT H. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.
CARVALHO, J. S. F. A Crise na educação como crise da modernidade. In: Educação especial: biblioteca do professor – Hannah Arendt pensa a educação. Nº 4, Ed. Segmento, 2007.
COUTO, M. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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